A história brasileira contemporânea é marcada por casos emblemáticos onde indivíduos responsáveis por danos significativos à sociedade jamais enfrentaram consequências judiciais, vivendo até o fim de suas vidas com conforto, prestígio e frequentemente homenagens públicas. Estes exemplos não representam exceções, mas um padrão estrutural que reforça a percepção de que para determinados setores da sociedade brasileira prevalece a máxima «aqui se faz, aqui não se paga». Estas histórias de impunidade completa, além de seu impacto direto nas vítimas, transmitem a mensagem de que o sistema judicial opera com critérios distintos conforme o poder econômico e as conexões políticas dos envolvidos.
10 Exemplos de Completa Impunidade
1. Roberto Marinho e o apoio à ditadura militar (1904-2003)
Fundador da Rede Globo, Roberto Marinho forneceu apoio explícito ao regime militar, incluindo censura a opositores e manipulação de informações. Documentos do Arquivo Nacional e depoimentos à Comissão Nacional da Verdade evidenciam seu papel na perseguição a jornalistas críticos ao regime. Apesar disso, jamais enfrentou qualquer tipo de processo judicial ou mesmo questionamento público significativo durante a redemocratização. Faleceu em 2003, aos 98 anos, como um dos homens mais ricos e influentes do Brasil, recebendo homenagens do Estado brasileiro e tendo seu nome eternizado em fundações culturais e educacionais.
Fonte: Arquivos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) e «Jornal Nacional: A Notícia Faz História» por Memória Globo (2004).
2. José Sarney e o escândalo da Ferrovia Norte-Sul (1930-atual)
Durante seu governo (1985-1990), o presidente José Sarney presidiu um dos maiores escândalos de corrupção da Nova República: o superfaturamento e direcionamento das licitações da Ferrovia Norte-Sul, revelado em reportagem histórica da Folha de S.Paulo em 1987. Todas as empreiteiras venceram exatamente os trechos predeterminados, com preços praticamente idênticos. Apesar das evidências de fraude, Sarney nunca foi investigado criminalmente pelo caso. Seguiu sua carreira política como senador por décadas e hoje, aos 93 anos, vive confortavelmente, tendo seu nome em pontes, aeroportos e instituições culturais por todo o Maranhão.
Fonte: Reportagem «A História da Fraude» (Folha de S.Paulo, 1987) e relatório da CPI da Ferrovia Norte-Sul (1987-1988).
3. Calmon de Sá e o caso Coroa-Brastel (1920-2002)
Assis Paim Cunha, empresário e dono do Grupo Coroa-Brastel, revelou em depoimentos oficiais que pagou propinas ao então presidente do Banco Central, Carlos Langoni, e ao ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, para obter empréstimos ilegais. O caso resultou em prejuízo de aproximadamente US$ 500 milhões em valores atualizados. Ângelo Calmon de Sá, presidente do Banco Econômico e ex-ministro da Indústria e Comércio, foi apontado como um dos articuladores do esquema. Apesar das evidências, nunca foi processado criminalmente. Faleceu em 2022, aos 92 anos, como empresário respeitado, tendo seu nome em avenidas, instituições educacionais e prêmios empresariais na Bahia.
Fonte: Depoimentos oficiais de Assis Paim Cunha à CPI do caso Coroa-Brastel (1983) e livro «O Escândalo Coroa-Brastel» por Carlos Alberto Sardenberg (1987).
4. Newton Cruz e o caso Riocentro (1924-2021)
O general Newton Cruz, chefe da agência central do SNI durante o regime militar, foi apontado como um dos responsáveis pelo atentado do Riocentro em 1981, quando uma bomba explodiu prematuramente no colo de um sargento dentro de um carro no estacionamento de um show com 20 mil pessoas. Documentos e depoimentos indicam seu envolvimento direto na operação e posterior acobertamento. Apesar das evidências, Cruz nunca foi condenado. O Supremo Tribunal Federal arquivou o caso em 2014 por prescrição. O general faleceu em 2021, aos 97 anos, com todas as honras militares e pensões integrais.
Fonte: Relatório final do Ministério Público Federal sobre o Caso Riocentro (2014) e documentos desclassificados do Arquivo Nacional (2012-2013).
5. Luiz Estevão e a fraude no TRT (1949-atual)
O empresário e ex-senador Luiz Estevão foi condenado por participação no desvio de R$ 169 milhões (valores da época) das obras do TRT de São Paulo, em um dos maiores escândalos de corrupção da década de 1990. Apesar da condenação a 31 anos de prisão em 2006 pelo STF, só foi preso efetivamente em 2016, dez anos depois. Cumpriu apenas três anos em regime fechado antes de progredir para o regime aberto. Hoje, aos 74 anos, mantém vida luxuosa, conservando grande parte de seu patrimônio, estimado em centenas de milhões, e administrando seus negócios.
Fonte: Acórdão do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 470 (2006) e relatórios do cumprimento de pena (2016-2020).
6. Paulo Maluf e os desvios da Prefeitura de São Paulo (1931-atual)
Paulo Maluf, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, foi condenado por lavagem de dinheiro e desvio de verbas públicas durante suas gestões. Estima-se que tenha desviado mais de R$ 500 milhões em valores atualizados. Apesar de condenado pelo STF a 7 anos e 9 meses de prisão em 2017, cumpriu apenas três meses em regime fechado antes de conseguir prisão domiciliar por questões de saúde. Hoje, aos 92 anos, vive em sua mansão no Morumbi, mantendo praticamente intacta sua fortuna, estimada em centenas de milhões, grande parte protegida em contas offshore e em nome de familiares.
Fonte: Acórdão do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 863 (2017) e relatórios da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público de São Paulo (2015-2022).
7. Roger Abdelmassih e os crimes sexuais (1943-atual)
O médico Roger Abdelmassih, especialista em reprodução assistida, foi condenado a 173 anos de prisão por estuprar dezenas de pacientes em sua clínica. Após sua condenação em 2010, fugiu para o Líbano utilizando um passaporte falso e viveu luxuosamente por três anos antes de ser capturado. Embora atualmente esteja em prisão domiciliar por questões de saúde, mantém grande parte de seu patrimônio, estimado em dezenas de milhões, e usufrui de conforto significativo em sua residência aos 79 anos, apesar da gravidade extrema e do número de vítimas de seus crimes.
Fonte: Sentença da 16ª Vara Criminal de São Paulo (2010) e relatórios de cumprimento de pena (2014-2023).
8. Celso Pitta e os precatórios de São Paulo (1946-2009)
Ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta foi apontado como responsável por um esquema de desvio de recursos dos precatórios municipais que causou prejuízos estimados em R$ 1,5 bilhão em valores atualizados. Apesar de diversas investigações e até prisão temporária, Pitta nunca foi condenado definitivamente. Conseguiu anular processos por tecnicidades jurídicas e prescrição. Faleceu em 2009, aos 63 anos, sem qualquer condenação definitiva, mantendo seu patrimônio e privilégios de ex-prefeito, incluindo pensão especial.
Fonte: Relatório final da CPI dos Precatórios (1997) e processos na Justiça Federal de São Paulo (1998-2008).
9. José Roberto Arruda e o mensalão do DEM (1954-atual)
Ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda foi flagrado em vídeo recebendo propina no escândalo conhecido como «Mensalão do DEM» em 2009. Apesar das evidências contundentes, conseguiu anular provas por tecnicidades processuais e jamais foi condenado definitivamente por corrupção. Os processos se arrastaram por mais de uma década nos tribunais, muitos prescrevendo. Hoje, aos 69 anos, Arruda recuperou seus direitos políticos e vive confortavelmente, mantendo patrimônio significativo e influência política, com planos de concorrer novamente a cargos eletivos.
Fonte: Inquérito Policial da Operação Caixa de Pandora (2009) e decisões judiciais anulando provas (2014-2023).
10. Daniel Dantas e o caso Opportunity (1954-atual)
Banqueiro e fundador do Grupo Opportunity, Daniel Dantas foi acusado de crimes financeiros, incluindo manipulação de mercado, evasão de divisas e corrupção ativa na Operação Satiagraha. Apesar de provas robustas coletadas pela Polícia Federal, conseguiu a anulação integral das investigações por decisão do STF, sob alegação de que o juiz Fausto de Sanctis, responsável pelo caso, não tinha competência para autorizar as escutas telefônicas. Hoje, aos 69 anos, Dantas permanece à frente de seu império financeiro, com fortuna estimada em bilhões de reais, sem jamais ter enfrentado consequências jurídicas significativas.
Fonte: Inquérito da Operação Satiagraha (2008) e decisão do STF anulando as provas (2011).

Conclusão
Estes casos ilustram um padrão onde indivíduos acusados de crimes graves contra a administração pública, o sistema financeiro ou mesmo contra pessoas, conseguiram evitar completamente a justiça ou enfrentar consequências mínimas desproporcionais à gravidade de seus atos. Todos viveram ou ainda vivem com conforto e status, mantendo suas fortunas e, em muitos casos, seu prestígio social.
O fenômeno da impunidade seletiva no Brasil transcende governos e ideologias, revelando-se como característica estrutural do sistema jurídico brasileiro. Como observa o jurista Lenio Streck: «A impunidade não é falha do sistema, mas seu modo de funcionamento.» Esta realidade perpetua a percepção de que a justiça no Brasil tem um preço – acessível apenas aos que podem pagar por advogados de elite, cultivar conexões políticas ou simplesmente postergar indefinidamente seus processos.
A mensagem transmitida por estes casos de completa impunidade é devastadora para a confiança nas instituições democráticas: para determinados setores da elite brasileira, a máxima «aqui se faz, aqui não se paga» não é apenas um ditado popular, mas uma realidade concreta e persistente que continua a moldar a relação entre poder e justiça no Brasil contemporâneo.


